marcela levi

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Silvia Fernandes
MITsp 2019
São Paulo
Março 2019

ENTREVISTA com Marcela Levi & Lucía Russo sobre Boca de Ferro

Desde 2010, vocês desenvolvem trabalhos que dissolvem as fronteiras entre dança e artes plásticas, na criação de uma zona de deslocamento de identidades fixas, inclusive as artísticas. Como o projeto de autoria compartilhada contribui para a dissolução de hierarquias e para um regime de multiplicidades que acolhe a diferença, o dissenso e o desvio?

Que bom, obrigadas pela pergunta! Vocês, quando nos propuseram a entrevista, disseram: Nossa proposta é que vocês duas pudessem se dividir, pra que as duas pudessem participar da entrevista. Alguém responde uma pergunta e a outra responde as outras duas. O que vocês acham? Propomos que as perguntas sejam respondidas por Marcela Levi e Lucía Russo, nem uma nem outra, mas essa terceira coisa que fala através do "e" colocado entre os dois nomes. É disso que se trata, de sair da frente, de deixar espaço para que um "não sabido" que nos une possa ser articulado. Gostamos de dizer que a nossa direção é divertida, ou seja, vertida em dois. Também Blanchot dizia que a conversa se dá no intervalo entre uma fala e outra. Ser dois para chocar, quebrar, estilhaçar, quer dizer, articular. E a autoria? Pois é, a autoria é a fumaça consequente do choque e a faísca que se produz na fricção.

Vocês afirmam que, nos trabalhos da Improvável Produções, a performatividade é um ato de invasão - "não tem um performer afirmando a sua identidade, e sim sendo invadido por outras existências". Como isso aparece em Boca de Ferro, que empresta o nome dos alto-falantes do norte do país? Amplificar as vozes, invadir, transformar e transtornar são modos de resistência?

Talvez sejam modos de existencia.

A maior parte dos dançarinos quer ser cavaleiro, isso é um problema para o corpo que nosso trabalho demanda. A gente não está cavalgando o próprio corpo. A gente é cavalo...

Mais interessantes são os corpos (re)movidos por invisibilidades, a nossa dança convoca esses corpos aborrecidos de sua própria imagem e contorno... Há algo disso na ficção científica, nos desenhos animados, em certos sonhos. (...)

Empatia não seria uma espécie de invasão? Um corpo partido, sujo de outros, contraditório e ambíguo talvez tenha mais dificuldade em chegar a conclusões rápidas e sentenças definitivas, não? Se a diferença estiver alojada no próprio corpo/existência talvez ela possa ser vivida e até mesmo celebrada em sociedade.

Existências alter-nativas que aparecem entre um e outro, nas fendas, com um e outro e outro e outro e outro e outro e outro e... aquilo que está vivo não é justamente o imprevisível, o que nos toma de assalto? Se deixar invadir nos libera de nossa performatividade clichê de identidade. A invasão pode ser uma espécie de inoculação de vidas outras (risos) ficou parecendo um pouco místico, mas não é não é bem suado mesmo.

Para nós, esse trabalho faz parte da procura de uma dança de corpos atrelados ao fora, corpos divertidos. Aí é que nos toca uma Bjork cantando "violently happy"; o eu fraturado de um Rimbaud ou o Nijinsky quando escreve em seu diário: "Nós somos ritmos. Os sentidos se situam sempre sob a fronteira, face a face com a onda proliferante da diferença. Não há identidades, apenas ritmos."

A dança caótica de Ícaro dos Passos Gaya levou um crítico a perceber um "ritmo infeccioso" em Boca de Ferro, feito de torções e excreções que colocam em cena um "corpo suor guiado pelo som. Como essa dança de exaustão e vibração desafia o espectador desse trabalho?

Expomos as pessoas - o público - a um corpo sujo. Um corpo que transtorna binarismos como: questão-resposta, masculino-feminino, homem-animal, etc... Todos os presentes são expostos a vozes contraditórias, ambíguas e excessivas coexistindo em um corpo que dessa maneira se multiplica, se desdobra, se parte e se desconhece.