marcela levi
Sylvia Botella
Toutelaculture - Bruxelas (BE)
Julho 2021
KFDA #21 - grrRoUNd /Marcela Levi & Lucía Russo : Terrenos de dança
As edições do Kunstenfestivaldesarts se sucedem e não são iguais. A edição 21 impressiona. O festival vive definitivamente com sua época. É assim que descobrimos, na segunda parte do festival (1 a 8 de julho), a estreia da peça grrRoUNd das coreógrafas brasileira e argentina Marcela Levi e Lucía Russo. grrRoUNd não é o desenrolar de uma peça de dança, harmoniosamente arranjada com imagens autônomas ligadas entre si por uma mensagem política a ser transmitida sobre o Brasil. Acima de tudo, é um terreno de dança surpreendente e irradiante. Ele liberta. A comunidade é sem fim ali.
Um trabalho de adição preciso
No coração da criação grrRoUNd de Marcela Levi e Lucía Russo, de todas as suas sequências, por mais sofisticadas que sejam - a coreografia como obra precisa de adição - está o corpo. Ele é bonito, esguio, tão frio quanto ardente, perturbador. Aqui, a dança é mais do que uma excitação, é uma confusão, destacando o corpo próprio por uma metamorfose num terreno vazio, "emplumado", negro.
Porque o movimento é muito rápido: o tremor (ou vibração) da mão do dançarino cria a aura do corpo, sua evaporação em favor de uma infinidade de movimentos fragmentados, intensivos.
Porque é a despersonalização fundamental e escandalosa do corpo humano, da cabeça aos pés: o dançarino não tem nada de um humano, é antes uma curva solta, mal-assombrada. Ele rasteja de quatro, ele "desfigura" o corpo humano, cria zonas visíveis e invisíveis, tensão e frouxidão, brancura e bronzeado, dureza e flexibilidade, secura e harmonia. Tantos diferenciais que desagregam o corpo e impedem que haja uma divisão binária.
Porque há heterogeneidades: esse corpo não deveria estar ali (?). A menos que, ao contrário, este corpo tenha aí todo o seu lugar. O dançarino "negro" se situa na confluência de uma virilidade afirmada e de um refinamento beirando a afetação: ele tem penas coloridas nos cabelos.
Porque o corpo mestiço é, a cada giro, anjo e demônio, civilizado e selvagem, gentil e violento. A ambivalência da dançarina - dorso nu e shorts jeans preto/tanga de tecido verde com franjas - desarranja sua aparência quase icônica.
Porque não há nenhuma emoção nem interação entre os corpos. O espaço entre os separa (ou os aproxima?). Ele respira: ele os liberta. E é isso que enlouquece nossa percepção.
Uma dança sob tensão
Em grrRoUNd não há dança sem alguma forma de tensão, até mesmo de contradição. Este transtorno provoca uma forma de dança que pensa (ou dança pensativa) ligada a uma profusão, e o virtuosismo de Marcela Levi e Lucía Russo está em associá-lo ao ritmo rasgado, patchworkado de uma trilha sonora ao vivo (pianista, violinista e sapateado) e pré-gravada: Kraftwerk, eletro de Bruno Tucunduva Ruviaro ou Gustav Mahler. A música é o outro elemento aqui, a pureza de suas dissonâncias e sua intangibilidade interpelam profundamente, muito tempo depois.
Seria um erro pensar que grrRoUNd é uma peça ingenuamente formal e política, harmoniosamente arranjada com imagens autônomas ligadas entre si por uma mensagem a ser transmitida. Como se fôssemos ver ali apenas corpos entrando em espiral sob os golpes da instabilidade política ou da crise de saúde que hoje assola o Brasil. Como se Marcela Levi e Lucía Russo nos mostrassem os limites de um imaginário que não se deve cruzar.
Evidentemente, grrRoUNd é mais do que isso. É uma tomada de assalto do mundo pelo desejo vibrante - leve como uma pena negra, leve-me para longe. Em outras palavras, é um estado de estimulação extrema sem bordas. Os corpos vasculham a noite, tanto em busca quanto completamente disponíveis para tudo que possa receber a carga pulsional que carregam dentro de si. Há ali, queiramos ou não, uma forma de beleza irradiante, transgressora e sufocante. É mesmo um mistério. Ela é mesmo bizarra. Vai além da ordem das coisas, nos surpreende. Ela explora solarmente nossa parte sombria.
Em grrRoUNd, o mundo é reordenado por nosso olhar e pela força do corpo elétrico. E esse novo mundo parece uma espécie de convulsão global, magnética. Estamos ali dentro, estamos comovidos. Encontramos um lugar ali, tanto simbólico quanto material. Essa precisão encarna justamente a pesquisa e a inteligência de Marcela Levi e Lucía Russo: a endless communauty.