marcela levi

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Daniela Name
Revista Caju
2021

História, estrada e poema

Curto, curto, longo e às vezes curto, longo, curto: um filme de estrada em métrica poética, trabalho de Marcela Levi e Lucía Russo criado para o Panorama Raft 2021, nos propõe o desafio de dialogar com um muro. E não um muro qualquer: toma um quarteirão inteiro da Tijuca, bairro de classe média da Zona Norte carioca, entre a Rua Barão de Mesquita e a Avenida Maracanã. A parede, lápide para trânsitos, imagens e corpos, torna áridas a encruzilhada e a pracinha dos arredores.

Um muro. E não um muro qualquer: atrás dele, e de seu branco silêncio, gritos de uma história abafada. Naquele Batalhão do Exército, fingia-se não saber, e ainda finge-se: no dia 20 de janeiro de 1971, Eunice Paiva, mulher do deputado trabalhista Rubens Paiva, foi presa pela ditadura militar brasileira com o marido e a filha Eliana, de apenas 15 anos. A garota foi solta na manhã seguinte. Eunice ficou encarcerada por mais 12 dias, nos quais foi levada para ouvir os gritos que supostamente seriam de seu companheiro. Mas Rubens não havia resistido mais do que 24 horas às torturas, e Eunice, recém-falecida por Alzheimer – as memórias recolhidas a uma espécie de confinamento -, jamais conseguiu velá-lo. O corpo, como tantos outros dilacerados pelo extermínio, nunca foi encontrado. Ficar sem o direito a prantear o luto é erguer uma parede que impede a elaboração da dor, duplica a morte.

Como transpor um muro com esse peso? Já aprendemos a conversar com as paredes? Como reencontrar o corpo recalcado, para que ele se disponha a falar? Curto, curto, longo…, projeto que pode ser encarado tanto como um filme coreografado quanto uma coreografia filmada, tateia algumas possibilidades. Nas primeiras imagens: uma placa de trânsito com a palavra “Retorno”, somada à seta que aponta para trás (ou para a esquerda, no sentido da leitura); o cruzamento da Rua Barão de Mesquita com a Avenida Maracanã, sobretudo com aquilo que um dia foi o rio de mesmo nome. Nos primeiros sons e gestos: a batida de marcha, de origem tão militar, vai sendo subvertida pela síncope, contratempo que dobrou o corpo marcial ao samba. Um soluço, um silêncio, um tropeço: a invenção rítmica do samba se fez da fresta por onde conseguiram passar a música e o movimento de corpos excluídos, cuja ancestralidade foi seqüestrada de outro continente.


ATRAVESSAR O CAMPO MINADO COM FICÇÃO

Marcela e Lucía, que juntas formam a Improvável Produções, escolhem escrever este trabalho a partir das frestas, ou daquilo que Walter Benjamin chamou de uma escovação “a contrapelo” dos processos históricos. As artistas e os bailarinos convidados para executar o roteiro pensado por elas se viram diante da necessidade de criar sem ter palco e nem plateia, no contexto da pandemia. Isso tudo em um país que exponenciou as perdas a partir de um cálculo genocida, tacitamente apoiado por uma população que, nos últimos anos, optou por fazer a exumação de seus fantasmas coloniais, e com eles de certa vocação torturadora curtida no passar dos séculos. E este é justamente o ponto de Benjamin: quando se escova a História com a coragem da via inversa, corre-se o risco de revelar os ácaros, pulgas e fungos que se escondem por trás da pelagem. É preciso vê-los, para não repeti-los. “Retorno”. Mas não para o mesmo.

Curto, curto, longo… tira partido do muro e daquilo que o cerca para revelar esses invisíveis. O ponto de partida do processo criativo das coreógrafas foi a história do poeta Abraham Sutzkever. Em 1944, fugindo da perseguição nazista com a esposa, ele foi obrigado a atravessar um campo minado. Optou por um método intuitivo: os dois usariam o ritmo dos versos anapestos (duas sílabas breves e uma longa) e anfibracos (uma sílaba longa e duas breves), métrica herdada dos gregos que forneceu estrutura à poesia e às canções do chamado Ocidente.

Sutzkever caminhou como se escrevesse um poema, como se dançasse, e sobreviveu para contar sua história. E essa é a maior maravilha da proposta de Marcela e Lucía: afirmar que é preciso seguir com o poema, ritmo e horizonte de qualquer travessia, de qualquer existência. É particularmente bonito ver como a mola propulsora fornecida por um poeta ídiche escapando do Holocausto se atualiza e se multiplica na Tijuca, no enfrentamento de nossos extermínios. E é importante destacar como o filme dançado vai convertendo o campo minado em solo fértil a partir de três movimentos distintos realizados no território: o vertical e o horizontal, frequentemente subvertidos como eixo cartesiano, e o circular.

Na verticalidade, vemos a exploração daquilo que um dia foram as margens do rio Maracanã, e um outro muro, o que aparta o asfalto do curso d’água, transformado em esgoto. A dança chega até esse leito profundo. Desce até a passarela rente ao rio, onde são executados passos de vogue. A fossa passa então a ser um fosso, e esse bastidor invisível dos espetáculos cênicos ganha o lugar de protagonista. O vogue, nascido da subversão das marchas e coreografias militares pelos corpos periféricos, é outro avesso que vem à tona, como uma erupção dos bastidores na ordenação rítmica oficial. Uma devoração antropófaga, como as realizadas pelos tupinambás da Guanabara. Foram eles os nossos gregos, como lembra Rafael Freitas da Silva em O Rio antes do Rio (Relicário Edições); foram eles os que chamaram de Tijuca – “água podre”, vejam vocês – aquela região. Vêm deles nossas primeiras palavras (Maracanã é o rio “dos papagaios”) e nossos ritmos seminais, ainda que tenhamos nos tornado surdos. A passarela de vogue e o fluxo d´água são horizontais que tensionam a profundidade vertical do muro de contenção, e a escavação gestual e imagética que Marcela e Lucía fazem do rio nos revela um leito esquecido, o colo do qual voluntariamente nos exilamos. Trocamos o que Oswald de Andrade chamou de “Matriarcado de Pindorama” pela morada como “cariocas” (“casa de homem branco”).


MOVIMENTOS NO ESPAÇO SUBVERTEM TERRITÓRIO

Na horizontalidade, seria preciso enfrentar a barreira extremamente sólida e vertical do muro do Batalhão. Marcela e Lucía propõe então uma infiltração dessa parede lisa e não aderente, que vai sendo revelada em suas rugosidades a partir das palavras estampadas sobre ela – “Exército brasileiro” vai recebendo cortes, de modo a virar “Exercito brasil” ou “Cito brasil”. Cenas de dança e também de um parque de diversão também recobrem o muro como uma capa semântica, vão lhe causando atrito – e é apenas com atrito que se cria relevo e um ritmo mais lento de absorção das palavras e das coisas. Se também estamos falando de imagens, e da sua sobrevivência no tempo e no espaço, relevo é relevância.

Ainda nesse eixo, é um fluxo horizontal movente e mobilizador o enorme plástico preto sobre o qual vemos os participantes do trabalho abrindo seus livros de poesia enquanto se deslocam lentamente, como se tivessem um oceano semântico inteiro para nadar. O plástico preto, véu dos que morrem na rua e dos indigentes, é levantado e remexido, como ocorre simbolicamente em todos os movimentos sugeridos pelo filme, que propõe esse reencontro, no luto, com um legado de esperança que pode ser herdado dos desaparecidos. O mar negro ganha significados ainda mais profundos quando lembramos que Marcela Levi despontou como dançarina, e mais tarde como coreógrafa, na companhia de Lia Rodrigues, a criadora do Festival Panorama na década de 1990, como lembrei no editorial desse projeto especial da revista Caju.

Lia, há anos trabalhando em um galpão em Nova Holanda, e incorporando em sua poética as histórias dos corpos das 16 comunidades distintas que formam o Conjunto de Favelas da Maré, usou um contínuo de plástico transparente como elemento cênico de Pindorama (2013), ponto final de uma trilogia de espetáculos que contou ainda com Pororoca (2009) e Piracema (2011). Não me parece acaso que os dois últimos títulos tenham referências aquáticas, falem dos fluxos e ciclos fluviais, enquanto Marcela, Lucía, seus companheiros e o plástico preto cobrem com um curso de ficção um pedaço do Rio – velar é reiterar a vida do corpo, dando canto e presença aos ausentes.

A memória de Lia me faz chegar ao terceiro movimento espaço-temporal sugerido por essa obra: a circularidade. Ela é a potência da praça e da encruzilhada tijucanas oprimidas pelo não-lugar do muro do Exército e do rio de lixo. E é na recuperação dessa virtudes poéticas que residem nos espaços de encontro e de desvio nas cidades que o filme dançado parece investir. Não me parece acaso que o pianista que executa parte da trilha, mesclando Beethoven, Prokofiev, Chopin, Chico Buarque e Jacob do Bandolim ao vogue, ao choro e ao sapateado das coreografias, toque em cima de um caminhão, que gira pelas ruas do bairro. Também não é aleatória a escolha das imagens que marcam o muro do batalhão. Além de citações a trabalhos anteriores de Marcela e Lucía, como Em redor de buraco tudo é beira (2009) e Natureza monstruosa (2011), elas mostram uma montanha russa, trilha sinuosa de vertigem e alegria.

É emocionante notar que nesses registros gravados no parque de diversões e em cenas finais na praça estejam coreógrafos e bailarinos de várias gerações da dança carioca, caso de Esther Weitzman, Dani Lima, Maria Alice Poppe e Denise Stutz, criadoras que marcaram a história do Festival Panorama. Adriana Pavlova escreveu o primeiro texto que publicamos neste especial da Revista Caju afirmando que o grupo Cena 11 criou, com Matéria escura, um novo vocabulário para apresentações cênicas nas plataformas digitais (leia aqui). Pensar a linguagem em seus meios é alargar o diâmetro e a altura de um círculo, transformá-lo em elipse. Neste último texto para a cobertura crítica do Panorama Raft 2021, ouso afirmar que Marcela e Lucía promovem outra expansão, menos para o lado de fora, mais para o lado de dentro. Elas afirmam que, se teremos que atravessar um campo minado no ritmo da ficção e do poema, é preciso que façamos isso de mãos dadas com nossa comunidade. Contar para o muro as histórias que já inventamos juntos talvez seja a melhor forma de transformá-lo em estrada.