marcela levi

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Cesar Ribeiro
São Paulo (BR)
Maio de 2022

"COMO UM FANTASMA, EU VOU EMBORA" ou "MORRA, RENASÇA"

Muito há para se dizer sobre as fantasmagorias de Chão, espetáculo de Marcela Levi e Lucía Russo com a Improvável Produções, mas, como hoje é o último dia de apresentações, segue um texto bem breve e sem a elaboração que merecia.

É um espetáculo de dança altamente provocativo que parte da fúria mascarada de derrisão para refletir sobre a instabilidade, a trajetória da cultura, os corpos, a despersonalização, as tensões e o desejo, numa espécie de sampling que mescla marchinha de carnaval, sapateado dos musicais estadunidenses, os conflitos no Rio de Janeiro (e, por extensão, no Brasil como um todo), O Gabinete do Dr. Caligari e diversas outras referências por meio de uma estrutura em que solos coreográficos trazem o sentido de comunidade a partir da combinação no palco, de um modo quase minimalista: um músico "martela" o piano de costas para a plateia; um performer atravessa o fundo do palco, de um lado a outro, sem parar, rente ao chão e citando, em inglês, trechos de músicas; outro está parado encarando o público; um corpo negro realiza um desfile que poderia estar numa versão multiverso de Roma de Fellini; outra performer negra dança, quase sempre sorridente, estereótipos racistas, abordando as imposições sobre os corpos; na plateia, outro performer, sentado na plateia, ora toca violino, ora realiza série de movimentos desesperados, quase convulsivos... Cortando tudo isso, as frequentes repetições das mãos de jazz, que atravessam desde as tradições das danças africanas até o universo dos memes, passando por vaudeville, Bob Fosse, Mickey Mouse e líderes de torcida, mas centradas no recorte racista a partir do uso pelos minstrels dentro de seus espetáculos que utilizavam blackface, como popularizado no primeiro filme sonoro: O Cantor de Jazz, de 1927.

Sem ser citado como referência (e por meio de outros procedimentos artísticos), o espetáculo traz algo semelhante à complexidade do brilhante vídeo de Childish Gambino para a música This Is America, em que a sequência de ações é preenchida de inúmeras referências que levam a uma reflexão igualmente complexa.

Por meio dessa estranha combinação de fúrias e crítica social que povoam o palco, o espetáculo consegue promover uma espécie de euforia comunitária no público. É um espetáculo fenomenal. Hoje é o último dia e há ingressos à venda: às 18h, no Sesc Santana. Vale muito assistir.