marcela levi
Felipe Ribeiro
Rio de Janeiro
Julho 2021
Tremendo sobre o Tremor
A visualidade deve ser liberada do ocularcentrismo. A citação de Fred Moten encontra na nova peça de Marcela Levi e Lucia Russo | Improvável Produções um ambiente propício para se realizar. Aqui, é a matéria fônica o que cria a base. Ou melhor, o que cria o c h ãO, uma palavra que é um gaguejo, iniciada por um assobio chiado. Escrito grrRoUNd em inglês, ambas marcas gráficas apelam a uma vocalização incorporada, retorcendo a tradução. O uivo intermitente na fonética portuguesa encontra, no inglês, o grunhido gutural de quem descansa na consoante até fender a palavra. Um sopro e uma fissura: dois movimentos que informam a peça como significantes complementares.
O que mais se fende além da palavra? Fende-se o espaço como contínuo no tempo. Fendem-se os limites que dividem concretude de abstração. Fende-se nosso senso de localização geométrica, em detrimento da emergência de uma percepção geológica. Contrariando as metáforas de fixidez a que o devotamos, o chão não é um já-dado. Tampouco é uma matéria-prima opaca esperando para ser utilizada, mas um conglomerado de sedimentos das condições que experimenta. Um chão é a constante produção de como seus volumes e suas escalas são trabalhadas, de como suas placas tectônicas se ajeitam, de como seus estratos negociam aderências e resistências uns com os outros, é o resíduo que devém dos acidentes, ser chão é ser soma de tudo o que lhe acontece. Podemos pensar que a noção de história é intrínseca ao chão, e merece, portanto, abandonar sua linearidade forjadamente disciplinada para se aceitar como um terreno movente e bem mais abrangente, tanto em superfície quanto em profundidade. Sugiro ser esta a performatividade operada em c h ãO quando os fatos são apartados de suas constituições cronológicas para serem ativados num plano de múltiplas temporalidades. Sonoramente, batidas e fragmentos são esgarçados, justapostos e sobrepostos uns aos outros numa faixa composta de gravações, música ao vivo e silêncio. Entretanto, os performers também sustentam suas próprias raias rítmicas. Alguns de seus movimentos são marcados pela duração alongada, outros pela repetição consistente. Se em outras situações essas opções poderiam apelar para a constância acostumando os olhos do/a espectador/a, sugiro que, do contrário, aqui essa persistência esgarce a trama dramatúrgica até que materiais inesperados possam surgir por entre seus furos, e a qualquer momento. Instável por princípio, c h ãO age como um campo elástico que abre bolsões de conteúdo que perigam se tornar maiores que o todo.
É sob tal maleabilidade, e justamente para nutri-la, que os performers assumem a tarefa de arejar as brechas, e quiçá exceder a visão em evocação. É assim que o imaginário entra em órbita, que estados sensoriais são projetados rumo à plateia, e as citações se apresentam em breves piscar de olhos. Nesse diagrama concatenado, matéria e afecção são priorizadas e ativadas para dali retrabalharmos os sentidos (o que invariavelmente acontece!). Intuo que o procedimento de associar matérias exógenas entre si torne o termo partitura uma denominação insuficiente. O que c h ãO faz operar, de fato, é uma prática de sampling - um ato que se sustenta na ética de entusiasmar de autenticidade o que já não é original. Fragmentos de materiais preexistentes são manejados de forma a não obliterarem a sua fonte, mas justamente lhe permitirem outros acessos. Não por acaso, a política está em débito com a dança e tem muito a aprender com a música. Seria o sampler o dispositivo do ato impossível de refazer a história pelo ritmo? Esta impossibilidade se materializa em c h ãO através de sua incessante sampleagem de partes potencializadas na fractalização do todo!
A matéria de c h ãO nem é prima, nem é histórica, senão fantasmática. Muitos fantasmas acompanham os performers. "Há espíritos em todo canto. Eles estão ao nosso redor, somos avisados. É difícil lidar com a falta de contato físico entre os bailarinos sem pensá-la como consequência - entre cuidado e respeito - das centenas de milhares de vidas perdidas, em todo o mundo, e severamente no Brasil. Enquanto essas ausências se tornam indubitavelmente presentes, outras só irrompem na cena se forem evocadas. Tais aparições não são exclusivamente humanas, nem necessariamente mortas.: em sua maioria referem-se a fatos, atos, momentos, gestos, eventos, fenômenos e epifenômenos ativados tanto nos ambientes do Funk carioca quanto no carnaval de rua, nos filmes mudos e de musicais, no jazz, no R&B, no xamanismo e no vogue, para citar alguns.
Com o espaço atormentado por fantasmas, a presença dos performers também se imbui de fantasmagoria. Nossa visão falha em atestar o que é presença. Tomados por um modo de ação não-reativo, os performers não externalizam como se afetam uns pelos outros, ainda que façam uso de suas capacidades perceptivas. Esta restrição cria um sentido de disparidade geral, na qual cada dançarino assume a função de um canal que absorve o imediato para devolver o mediado. Tamanho disparate faz com que sua tarefa seja menos a de construir um chão comum do que a de sustentar juntos o vão que se invagina. c h ãO se faz assim no acúmulo ventilado de forças coletivas que geram suspensão, circulação, profundidade de campo, ritmo, vibração, espanto, ciência, e o acordo comum de não sucumbir. O que talvez só seja possível se a fissura encontrar o sopro.
Contestar os parâmetros da visualidade é também reconhecer o espaço concreto que o público ocupa no teatro. Ali onde "audiência" e "espectadoriedade" confundem som e visão, nossa presença testemunhal parece funcionar como um vértice que se estende para fora do palco conectando os acontecimentos em cena. Somos então forçados a reconhecer nossa posição nessa arquitetura escópica, bem como nossas forças latentes. É difícil descansar quando se está em evidência. O que vem a nós, não nos chega como um presente, mas como uma ação sustentada por nossa colaboração que é tão somente a consciência de estarmos presentes. Outrossim, a frontalidade do palco se torna menos um artifício do que uma crítica. Num dado momento, gestos dinâmicos, daqueles que finalizam números musicais, perduram o tempo suficiente para que a cena oscile entre diversão e urgência (e, então, volte à diversão, e volte a ser urgente, e da urgência surja diversão, e...) Mesmo sob a condição de testemunhas colaboradoras, nenhum acesso privilegiado nos é concedido. Muito se desdobra à nossa revelia, algumas ações acontecem fora do palco, e músicas tocando no fone de ouvido de uma performer negra nos lembra que há "segredos públicos" que sustentam certas operações de Pretitude. Todas essas restrições são, talvez, o necessário desconforto que nos fará gaguejar ao dizer a palavra e s p p pPeccc tAddd or - e, ao desfamiliarizá-la, talvez possamos permitir outras formas imaginativas de visualidades.