marcela levi

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Ana Kiffer
Rio de Janeiro
Julho 2021

c h ãO
entre nós, um solo comum

Antecipar uma presença potencial,
que ainda não está revestida de uma forma estável,
deveria ser o ponto de partida de toda crítica por vir
cujo horizonte é de forjar um solo comum.
Achille Mbembe, Brutalisme, 2020


não sou coreógrafa, nem bailarina, não sou atriz, nem performer, não sou europeia, nem judia, não sou rica, nem pobre, não sou homem, sou mulher, não sou negra, não sou índia, não sou música, não sou matemática, não sou cientista, não sou livre, não sou feliz, não sou triste, não sou casada, não sou sozinha, sou só, não sou hétero, não sou lésbica, não sou jardineira, não sou reciclada, não sou entusiasta, não sou apática, não sou apolítica, sou, apesar de mim, racista e machista, não sou livre, não sou nova, não sou velha, não sou livre, não sou alpinista, não sou ciclista, não sou livre. não sou muitas coisas.

eis que o não-ser nsurge hoje como parte fundamental de tracejo de um solo comum. um chão negativado. nos definimos não apenas por uma identidade positivada, construída ou afirmada, lutando por emancipação, mas também pelo imenso número de extravios que constituem o espaço comum das sociedades contemporâneas. isso que estou aqui chamando de não-ser se aproxima, desse modo, da visão individual e solitária de sucesso/fracasso que nos forja e nos oferece o mundo ultra neoliberal, onde, de fato, a imensa maioria, se sobreviver, viverá nas camadas do não-ser. mas o não-ser não é só isso. ele é também a potência que ativa abandonarmos o edifício colonial-ocidental e racista do Ser. ele nos obriga, ou ao menos nos convoca, a reconhecer essa imensa camada do solo feita de e por não-seres, ocultados ou negados, estrutural e historicamente. são camadas antigas e ancestrais, mas que continuam atuais, sendo secularmente subalternizadas ou exterminadas. o direito de existir digna e em estado de reciprocidade - num solo comum - não foi o solo que construímos, nem esse sobre o qual pisamos hoje, em qualquer parte do planeta terra. continuamos sendo as sociedades dos muros, das fronteiras, das plantations, das favelas, dos apartheids, dos campos, da guerra, da guerra, da guerra.

mas sobre esse mesmo chão, e ainda nos contornos do não-ser, somos também interpelados, e hoje mais longe do que o que podíamos prever, a ativarmos a potência da Relação (Glissant). desmunidos do Mundo somos interpelados a deslocarmos o Ser como origem e edifício do chão que pisamos. imaginando-nos possíveis apenas como fruto de um acontecimento onde só existimos co-nascendo (Mbembe).
se não conseguirmos ativar a potência da relação, de um ser-sendo, co-nascendo, nos tornaremos como as mãos negativas inscritas numa caverna há trinta mil anos (Duras). o acúmulo de não-seres nos dará, com sorte, a oferta de nos tornarmos apenas vestígios, num futuro hoje ainda inimaginável. esse solo comum do não-ser é onde jogamos os dejetos dos corpos, os restos e os pedaços de tudo o que a vida em sociedade, asfixiante, inviável, extremamente injusta, com uma concentração de riqueza a cada ano mais lancinante e o aumento indescritível de um número de passantes cada vez mais precarizados, ou simplesmente matáveis e facilmente substituídos, vem nos outorgando.
ser assim tão descartável, totalmente substituível, e rápido, rápido, muito rapidamente trocado determina, sobre os nossos corpos, o tracejo de um solo de forças de dominação predatória. conhecer esse solo de forças é tarefa primordial das artes do corpo. sem esse conhecimento, e a busca por combatê-lo, a nossa própria possibilidade de circulação, logo de movimento, será também interrompida. não serei só eu que não 'serei' bailarina, mas ninguém. mais ninguém. nem um só corpo. também o fato de que a maior parte dessas forças predatórias não possuam sempre formas estáveis, aparecendo como quem foge, sobre a linha de inusitados processos de mutação, nos faz buscar por um tipo de conhecimento afeito aos solos instáveis - em tremor. próximo aos modos do tatear, rastejar, cair, levantar.
ali onde vive o tremor está também a possibilidade de dançar.
ao contrário do que se pensou por muito tempo a dança não precisa de um corpo reto nem de um solo firme. mas quebrantável, maleável, permeável, traspassável. também, diferente do que imaginávamos anteriormente um corpo-crítico rastejante é hoje o corpo-crítico, digamos assim, mais elevado. próximo ao pressentir das presenças antecipadoras. distanciando-se, não sem esforço, da confirmação das formas previsíveis e fixadas.

quando o previsível se torna apenas o pior, o fim e a inviabilidade da vida nos convoca a imaginar diferente o mundo. sob o risco de nele não podermos mais viver.

o chão do mundo há muito tempo já havia ingressado nesses sistemas caóticos do Todo-Mundo em tremor, como alertava Glissant. mas nunca sentimos tanto quanto agora, em escala planetária, que perdemos todos juntos a terra firme. que não fomos capazes de construir um solo comum que não seja o da destruição. e que sim somos agora interpelados, porque sem chão, a rastejarmos critica e esteticamente. buscando retraçar linhas propositoras de conhecimentos germinais: em forma gérmen. próximos à putrefação deste mundo, mas também ao surgimento larvar de outras formas-vida.

quando um corpo dança todas essas forças, tanto as de dominação predatória, quanto as do tremor e da imprevisibilidade do Todo-Mundo se entrechocam. não há a possibilidade de movimento sem que todas essas forças sejam sentidas, incorporadas, atravessando o corpo que dança e o da própria cena, que de forma instável ali pousamos ou, provisoriamente, instalamos.

c h ãO busca estar, ou de algum modo se vê diante dessas forças com júbilo e terror. alegria e tremor. o mundo coberto de penas é a cena que instaura o chão de c h ãO. são penas dos nossos pássaros carbonizados. dos nossos corpos carbonizados. são também todas as penas do mundo, ali reunidas nessas delicadas penas pretas, pousadas fragilmente sobre o chão. São também corpos ultra leves, corpo-pluma, desenhando formas de sair do chão. são ainda as mortes incontáveis sobre os tempos de solos imemoriais que atravessam a terra brasilis. e além.

de chão em chão abrem-se mundos - fazê-los convergirem e coabitarem o mesmo espaço-tempo é também enfrentado por c h ãO. proposição que incorporam os bailarinos e as coreógrafas, sem, no entanto, diluir um solo noutro, nem os apartar. estão todos em relação percussiva, ressoando os tremores onde do não-ser passamos ao ser-sendo como experiência laminar e liminar de construção, diria mesmo de antecipação, de um possível solo comum.

o termo 'solo' deve ser lido aqui na sua dupla condição : a de chão e também a dos solos que os bailarinos dançam sozinhos. nesse espetáculo só existem solos, a priori impostos pela condição sanitária que nos impede de tocar o corpo do outro. corpos 'intocáveis' dos bailarinos-criadores, mas ainda assim transpassados pela força percussiva que está na base, diria no solo primordial de c h ãO. é uma percussão feita de corpos-sons-música e palavra. uma percussão aberta, transpassada ela também pelos limites das sonoridades inaudíveis - feitas de pedaços misturados de todas essas partículas ali postas juntas. é essa potência percussiva que engendra uma forma imprevisível de contato entre todos. propagando e atravessando os nossos corpos ela repercute e ressoa agora sobre todos os solos. poderíamos então dizer um solo comum ?