marcela levi
Laura Erber
Rio de Janeiro
Março 2017
ranger de ferros, dobradiças
Envelopes do corpo oferecem uma impressão de unidade e proteção que a porosidade dos sentidos e a inquietude dos nervos vêm constantemente desmentir e atormentar. Se o corpo não pode ser pensado e vivido como estrutura fechada em si mesma ou sistema autárquico, olfato e audição são os sentidos mais pervasivos e que mais intensamente afirmam a corporeidade como experiência de atravessamentos irremediáveis. Pode-se fechar os olhos e evitar o toque, mas a questão se complica quando somos expostos a odores e sons desejados - o canto das sereias - ou indesejados - o gemido dos doentes. Ao articular em cena um corpo-suor guiado pelo som - "boca de ferro" é também o nome dado aos alto-falantes -, este novo trabalho de Marcela Levi e Lucía Russo enfrenta a hegemonia visual que no Ocidente sempre tendeu a definir e moldar a experiência corpórea e sua estetização. É o som, aqui - em articulações tão intensas quanto heteróclitas -, que guia as mutações e colapsa a unidade do sujeito em cena, produzindo um corpo que dança em torno de seu buraco infernal. Absorvendo do tecnobrega o que ele tem de pulsação endemoniada, o performer Ícaro dos Passos Gaya incorpora belamente a energia do desespero que relança as cartas da perda de si por meio de sucessivos movimentos de possessão/despossessão. Numa espécie de vertigem hipnótica, o corpo recebe as espirais do som estridente e seus chamados, sons urbanos, decaídos, de uma realidade sem mito e sem mística e que no entanto revela sua potência ao suspender oposições, tornando-se radicalmente receptiva às forças de penetração. Como em Caravaggio, aqui o drama terreno é também uma massa dramática de sentidos não digeríveis, não elaboráveis, mas que o corpo transpira e regurgita, como um mestre louco de uma tribo cujas regras de culto desconhecemos. Assim participamos dessa dança nervosa do corpo posto à exaustão, e da exaustão tomada como energia que desloca os esquemas simétricos e nos confronta com a intensidade vibratória de vitalidades alojadas na impotência, de uma sensibilidade capaz de acolher a violência dos nervos, que a todo momento desafiam explodir a pele e desarticular os ossos, produzindo em cena os espasmos de um corpo abatido e triunfante, exaurido e revigorado, frágil porque se abriu radicalmente à ação de suas forças.