marcela levi
André Lepecki*
Outubro de 2024
corpocorocorpocor
Marcela Levi e Lucía Russo coreografam juntas desde 2010. Não creio que se trate de uma dupla. Desde sempre, elas já são coro. Todas as suas peças, desde a extraordinária Natureza Monstruosa (2011) até a atual o que é o coro. coro, passando por Mordedores (2015) e Deixa Arder (2017), partem desse princípio coral. Na história lenta da dança teatral, a passagem do ato social de dançar para o ato estético de coreografar também envolve a ideia/prática do coro. A palavra que se inventa para designar essa nova arte do movimento enclausurado sob o regime da arte foi Orchesographie — que intitula um importante tratado de dança francês de 1589 e que significa, literalmente, a escrita do movimento do coro. Ou seja, antes de a palavra “coreografia” (escrita do movimento) surgir, nos finais do século XVII, a arte da dança se entendia como essencialmente uma arte coral. Retomar o princípio coreográfico do coro, eis o que Levi e Russo acionam de maneira totalmente única nas suas peças. Mas como o fazem? Investigando, meticulosamente, e não sem uma dose essencial de humor, o fato simples, porém tão frequentemente esquecido, de que “coro” é o nome mais adequado para corpo. Vemos isso de forma totalmente incandescente em Deixa Arder. Supostamente um solo, Levi e Russo nos mostram como todo e qualquer corpo é suporte para incontáveis outros corpos provenientes de tempo- espaços múltiplos: humanos, não humanos, espirituais, tecnológicos, simbólicos, políticos, linguísticos, sonoros, afetivos, sexuais, raciais, midiáticos. Importante: para Levi e Russo, coro não significa, de modo algum, harmonia; significa turbilhão, cacofonia. Como se vê em o que é o coro. coro, acreditar que todo corpo é cacofônico significa que muitos gestos que chamamos de “nossos” não nos pertencem; que muitos de nossos atos recapitulam estranhamente elementos de um arquivo cinético abismal a partir do qual tentamos construir “nosso” movimento. Em o que é o coro. coro, Levi e Russo nos mostram corpos atravessados por uma compulsão cinética nos limites da bizarria. Mas essa bizarria, essa “desorquesografia”contemporânea que Levi e Russo nos propõem, é simultaneamente princípio de poesia e princípio de vida
*Escritor, curador e professor titular na New York University (NYU), onde coordena o Departamento de Estudos da Performance