marcela levi

EN

Lucas Corbucci: Entrevista com Lucía Russo e Marcela Levi
Improvável Produções
Fevereito-março, 2025

o que é o coro.coro

LC: As bexigas pretas pairando a uma longa distância das cinturas dos performers, a de- pender do local de onde se via a apresentação, funcionava como um indício de presença: não se via o intérprete, mas o elemento flutuava sinalizando sua filiação ao corpo. Como espectador, refleti sobre como esse efeito evidencia a ideia de que um lugar (como a sala de apresentação, a rua e a cidade) é constituído por presenças de múltiplas características, aquelas que são físicas, fixas, passageiras, estrangeiras, visíveis, invisíveis etc. Além disso, as bexigas pareciam também evidenciar a verticalidade do prédio, acessando o inatingível pelos nossos corpos, fabulando a ocupação de outras alturas. Vocês poderiam descrever um pouco sobre a criação desses elementos flutuantes?

Sim. Talvez. Também. Um indício de presença, uma co-presença, um corpo compósito, um composto entre corpos pesados e ultra leves, humanos e outros-que-humanos. Co-presenças. Polirritmia. Corpos pesados entrelaçados a corpos ultraleves, cuja habilidade de flutuar lhes permite habitar espaços outros do teatro e tocar-se, encontrar-se com quem está nas alturas dos balcões e galeria que compõem a arquitetura vertical do TMSP. Presenças hiper sensíveis às correntes de ar, às diferenças de temperatura, ao movimento e às oscilações dos corpos pesados aos quais se encontram interligados. Poderiam ser também pontos opacos que esburacam a translucidez do espaço aéreo. Buracos que brotam por onde passeiam. Duplos fantasmagóricos de crânios, presenças flutuantes que carregam signos de luto e celebração.

Pensamos na relação de ressonância entre corpos humanos e bexigas como uma maneira de dar a ver uma malha invisível de relações nesse ambiente vertical. Corpos ligados por um intervalo que une cima e baixo. Corpos-arquipélago, cujo intervalo faz liame e não separação. Um liame hipersensível que se engendra na oposição de forças, em um distanciamento de vinculação, em uma relação flutuante por um fio. Relação de dupla ressonância entre bexigas que flutuam no ar e os corpos humanos que andam de quatro em meio a verticalidade estrutural da arquitetura do TMSP que implica, explicita e sustenta ainda hoje um regime de visualidade hierarquizante, que privilegia aqueles que podem (pagar) mais. Como transtornar essa perspectiva assentada nessa arquitetura que de partida reflete o status quo de uma sociedade desigual? Como fazer mover essa arquitetura? Possibilitar o trânsito desses corpos compósitos, entre fosso, palco, e plateia, balcões e galeria, nos pareceu uma maneira de colocar em jogo essas questões.

Lucas Corbucci: Na condição de espectador, percebo na obra uma espécie de destituição da exclusividade de foco aos bailarinos, tudo parece ser incluído como elemento integrante do espetáculo: a arquitetura, nossos corpos observadores, os intérpretes, os adereços, os vazios. Quais estratégias vocês utilizaram para promover essa sensação (se é que essa foi de fato uma intenção prévia)?


ASSEMBLÉIA-ARQUIPÉLAGO-FLORESTA

Sim. Talvez. Também. Há tempos que nos dedicamos a ativar e recuperar a fantasmática dessa tríade ASSEMBLÉIA-ARQUIPÉLAGO-FLORESTA do e no espaço teatral. Quais são as operatividades que podemos inventar para ativar e reativar o teatro como um espaço de partilha, participação e imaginação coletiva? Um espaço de conspiração que trama, destrama e retrama relações interdependentes entre existências humanas e outras-que-humanas? Ser parte, fazer parte, participar.

“o que é o coro. coro”, o nome da peça, é também um fragmento de uma outra peça da escritora estadunidense Gertrude Stein”. Associamos esse fragmento à noção de “arquipélago”, cunhada pelo poeta martinicano Edouard Glissant, com o desejo de colocar em jogo a noção de coro não como coesão, mas sim como um espaço-entre diferentes. Redistribuir as atenções. Desviar a percepção para os espaços-entre, deslocar a percepção para os intervalos que fazem possíveis liames entre aqui e lá. Estar aqui sem perder o lá de vista. Incluir aqui o que não está, não se vê. Os intervalos como corpos, como espaços ressonantes e vibrantes, que fazem as relações possíveis através das distâncias que eles vinculam.

Imaginar o TMSP como um arquipélago, constituído por plateia, balcão, galeria, fosso, palco e seus intervalos. Intervalos como passagens. Intervalos de pele, de roupa, de ar, de sons e silêncios. O intervalo é matéria fulcral nesse trabalho, rege a instalação coreográfica, o desenho de som e o desenho de figurino. O intervalo, esse liame magnético, nos permitiu articular paisagens diversas. Os intervalos são como uma dobradiça, abrem e fecham no ponto onde o tempo se curva para frente e para trás.


LC: Refletindo sobre !o que é o coro.coro” tentei encontrar motivos que justificassem as direções inusitadas traçadas pelas cabeças dos espectadores, incluindo a minha: o palco não foi um ponto de apoio constante do nosso olhar. Investigamos o teatro, encontramos olhares de outros espectadores, nos sentimos parte da composição. Talvez um dos fatores poderia ser a relação que vocês estabelecem com o tempo, modulando os ritmos - como se ao dilatar a duração dos movimentos, ao frustrarem as expectativas do público de um grande acontecimento - os olhares da plateia entendessem que se tratava de um convite a uma observação de outra ordem. Essa descrição contempla, de alguma forma, um pouco da intenção de vocês?

Sim. Talvez. Também. “aqui-lá” é um outro conceito de Glissant que nos arrebata e comove. Estar aqui-lá. Aqui não é tudo, nem suficiente, nem total, há lá. Aqui é parte. E ao frustrar essas expectativas que vão ao encontro de um “grande acontecimento” talvez o olhar possa desviar, navegar, a escuta entrar no jogo com o olfato e o tato. Dar tempo para sair daqui e entrar acolá. O tempo que surge quando a sensação de “já visto” libera a cabeça para virar e perspectivar, participar. Deixar a desejar… algo que não é visível, não é capturável.

Redistribuir as atenções em um ambiente que impõe uma frontalidade e um foco que endereça nossas atenções para o centro do palco é um desafio saboroso. Dessa forma, para bagunçar a frontalidade que a arquitetura do TMSP sugere, trabalhamos para “sair da frente”, para deixar o foco e as cabeças navegarem talvez como os balões. Também estavam viradas - para o lado, para baixo, para cima - as cabeças dos performers em cena, Cabeças-antenas redirecionando-se. A produção de uma certa errância da percepção nos interessa.


LC: Pensando sobre a escala do Theatro Municipal em relação aos performers: que tipo de impacto vocês reconhecem na realização e apresentação deste trabalho em específico? Partindo do pressuposto que o espetáculo cria espaços - menos normativos em durabilidade, mas tão visíveis quanto a arquitetura - como vocês endereçam à dança e à performance essa vocação de se relacionar com escalas, temporalidades e experimentações do espaço?

Pois é, a relação com a grande escala… nada evidente. Como vivê-la e ainda assim não espetacularizar? Talvez tenhamos apostado em uma certa aproximação - sair do palco, os balões e etc… - em meio a vastidão. interferências transitórias em meio a vastidão. Não preencher, mas coexistir com todos os demais que ali estavam entretecendo passagens entre cima e baixo, lado e outro em uma coreografia de passagem.

A relação com a grande escala, com as grandes dimensões, nos trouxe a pergunta: como propiciar relações à distância e, ao mesmo tempo, fazer perceptíveis detalhes, existências menores, ações sutis?

Nos interessava de alguma forma colocar em jogo o regime do entretenimento que arquitetura imponente do TMSP demanda. Montar, desmontar e remontar aspectos do entreteni- mento, torcê-los deslocá-los. Entrar em distanciamento de vinculação com um certo preenchimento hiperativo do tempo característico do entretenimento através disso que chamamos "o regimento do intervalo". No final sobra a questão que nos acompanha há tempos: De acordo com o tempo, o intervalo pode operar como ressonância, suspensão ou esvaziamento. Esse o tempo é relativo ao que veio antes ou ao que virá?

“… virá que eu vi…"


LC: Se vocês pudessem fazer uma pergunta à Eleonora Fabião, qual seria?

Nos interessa particularmente as perspectivações que ela faz em torno do fragmento como matéria-potência de relação e a proposta de “coisação” que ela lança para deslocar o binômio sujeito/objeto na performance. De alguma maneira, nos parece que deixar o fragmento fazer corpo coletivo se articula com a "coisação", que abre, intervala, desvia do con- fronto dos antagonismos e complementaridades. Se possível, gostaríamos de ouvi-la sobre isso.