marcela levi

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Katja Praznik
Revista Obscena
Março 2008

Mulheres Encarando o Objeto
Massa de Sentidos e In-Organic de Marcela Levi

As duas peças de dança Massa de sentidos e In-organic da artista brasileira Marcela Levi que fizeram parte do programa deste ano do festival Complicitats em Barcelona podem ser abordadas, como todas as performances mais complexas, de várias maneiras. Vou abordá-las enquanto espectadora feminina e participante do festival, visando a questão de como as performances de Levi estão ligadas para articular a coerência inata de mente e corpo ou, segundo as palavras de Elizabeth Grosz, como "corpos e mentes não são duas substâncias distintas ou dois tipos de atributos de uma única substância, mas algo entre essas duas alternativas". De modo a inverter a hierarquia habitual de corpo e mente e a longa história de somatofobia, Grosz usa um modelo de banda de Möbius ao repensar a noção de corpo/mente em relação a subjetividade e corporalidade, para mostrar "a inflexão da mente no corpo e do corpo na mente, as maneiras pelas quais, através de um tipo de torção ou inversão, um lado se torna o outro", e "a torção de um no outro, a passagem, o vetor ou a tendência incontrolável do interior para o exterior e do exterior para o interior."

Estas são também as questões que Levi aborda explicitamente tanto em Massa de sentidos como em In-organic.

Em Massa de sentidos, ela usa uma referência muita específica ao Object Dard do artista conceitual Marcel Duchamp, em que Duchamp utilizava a pasta que os dentistas usam para fazer dentes falsos para produzir um molde de sua mulher. Assim, Levi pega não essa pasta mas massa de pão tingida de vermelho (o que abre outro nível de significados no campo dos estereótipos masculino/feminino) como o parceiro do diálogo na performance onde todos os materiais, objetos, bem como a corporalidade da artista, são tomados como parceiros iguais na produção de uma imagem física, sensorial. Além dos objetos, ela usa também a projeção na parede, que mostra, na perspectiva olho-de-pássaro, o que Levi faz na área quadrada do chão do palco. Com o uso deste elemento, o espectador é confrontado com a acima referida ambivalência intrigante ou passagem do interior para o exterior, a tela representando o exterior visual e o corpo no quadrado apresentando o interior corpóreo emocional. Assim, as noções de interior e exterior apresentam dois componentes cruciais que se entrecruzam através de vários elementos na performance, produzindo imagens que encontramos não apenas com nosso olhar, mas também com a experiência física, emocional. A torção do interior e exterior, corpo e mente, visual e corpóreo, é complexamente entrelaçada e multiestratificada como as bonecas matrioshcas que apresentam uma metáfora material na peça de Levi.

Mesmo que, à primeira vista, Massa de sentidos surja como uma performance muito formal e visual, pelo uso e estruturação muito cuidados dos elementos/objetos visuais em conjunto com o precioso e calmo movimento corporal, produzindo um tipo de quadro sólido, uma série de elementos determinados socialmente evoluem através das imagens que pertencem à imagética feminina. Combinando o campo conceitual de interior e exterior com noções do corpo feminino, Levi abre uma experiência encarnada da subjetividade corpórea, que não é unificada, mas em processo de constante tornar-se, reformar-se e mudar. Esta idéia está embutida também na própria forma da peça, na medida em que ela tem uma espécie de toque cíclico que poderia se repetir continuamente.

Uma tendência semelhante é visível também em In-organic, na qual objetos muito específicos ligados à condição social brasileira são utilizados, novamente no diálogo com o corpo. Desta vez, lidamos com colar de pérolas, cabeça embalsamada de um boi, luz traseira de bicicleta e grampos de cabelo, que funcionam como uma mancha ou ruído que entra no corpo feminino. A mancha/ruído das questões sociais e políticas da vida quotidiana produz um tipo de corpo diferente do de Massa de sentidos. Em In-organic, lidamos com um corpo não num processo de vir a ser, mas um corpo atado a constrangimentos, rituais e convenções sociais, um corpo que é contraditado pelo interior e pelo exterior de um modo imposto, hierárquico. Já não se trata de uma formação frutífera ou construtiva de relações ambíguas com uma corporalidade que funciona de maneira produtiva, mas de uma questão aberta que, através do corpo da performer e de suas relações com os objetos, mostra como a inteireza social do corpo humano é muitas vezes completamente irrefletida e portanto altamente problemática.