marcela levi

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Renan Marcondes
lá . textos para dança
Junho de 2024

mumianijinski
Para "3 contra 2: psico trópicos"

"Dessas figuras coreográficas emerge
um masculino delirante que puxa o
tapete das nossas atuais imagens
pacifistas e tímidas de progresso, de
integração homogênea e lisa com a
natureza."


No mito de Osiris, Isis procura seus pedaços pelo mundo após ele ter sido desmembrado por seu irmão Set. Encontra todas suas partes, menos seu pênis, que havia sido jogado nas profundezas do mar. Para engravidar de Osiris, Isis cria então um pênis artificial, feito da acácia, engravidando assim de Hórus. Osiris, após sua reunião parcial, torna-se assim a primeira múmia da história. Em um site na internet, alguém diz que essa é uma história de amor e terror ao mesmo tempo. Assim eu também descreveria as últimas criações da Improvável Produções, que pensam a obra de arte como esfinge que lança perguntas para seu público.

Em 3 contra 2: psico trópicos, vemos em cena três homens em grande parte da obra, em uma espécie de disputa silenciosa entre o ballroom e o faroeste estadunidense. Em um corredor visto lateralmente pelo público, uma espécie de jogo de pergunta e resposta entre dois performers marca grande parte da cena. De um lado, um pianista dançarino veste apenas calças para montaria em touro com adornos pink, sentando-se sobre uma caixa onde toca percussão e piano, executando de forma repetitiva uma mesma partitura de mãos e caminhadas que muito parece os poucos frames de Nijinski como fauno, em preto e branco e baixa definição. Quase um autômato de um caubói-hieroglifo-modernista, esse performer toca e dança e monta seus instrumentos bareback: ao mesmo tempo sem cela e no pelo. Quem responde à sua dança é a figura de um performer fauno que já encontramos em outras criações da dupla, circundando o espaço com um voguing que geralmente termina com o corte de sua própria cabeça (ao menos seu gesto, com um dedo que atravessa seu pescoço). Essa luta, porém, não tem vencedores ou perdedores, e o investimento é na própria relação entre os corpos que se dá em uma guerra – mas também no sexo. Um contra o outro mas também um para o outro – ou melhor, um “no” outro, como se essa disputa interminável aos poucos fizesse uma figura entrar na outra, cada vez mais e mais “no pelo”.

A ideia de algo contra outra coisa, presente no título da obra a partir da polirritmia de 3 batidas contra 2, parece permear toda a obra, seja na já citada relação de embate amoroso entre os dois performers que dialogam sempre em desencontro, seja na inteligente formatação espacial do espaço no qual, sobre o palco, vemos a plateia de um dos maiores teatros do Sesc São Paulo “de esguelha”, se colocando contra mas também ao lado da disposição à italiana, ou mesmo na inteligente luz de Laura Salerno, que, a ponto de cair, ilumina “de contra” os corpos, banhando aos poucos os corpos dos performers com o mesmo pink que vemos na calça de montador. Tudo aqui escorre, tudo ao ponto de cair: da maquiagem às luzes ao corpo que tomba para trás em mackaella dip.

A circularidade dramatúrgica e gestual se intensifica ainda mais quando um terceiro homem entra na conversa, com o pescoço pintado de dourado como se sua cabeça não fizesse parte de seu corpo – como em outras obras, o glamour carnavalesco torna-se rapidamente uma imagem de detritos de guerra. E é seu pescoço que circula, junto de todo seu tronco, fazendo-o deslocar-se de forma cambaleante pelo espaço. Esses corpos vagueiam não apenas pelo espaço do palco, mas também pela história, recuperando gestos de temporalidades distintas de forma metodologicamente alucinada. É daí que se abre espaço para uma última figura nua (bailarino que, de certa forma, carrega Nijinski em si) que, com a ajuda de um adorno carnavalesco fálico em sua cabeça, coloca para sambar o fauno de Nijinski, nosso Ney Matogrosso e uma marcha militar, que ao seu fim se direciona não mais para nós, mas para a imensa plateia vazia ao nosso lado. Dessas figuras coreográficas emerge um masculino delirante que puxa o tapete das nossas atuais imagens pacifistas e tímidas de progresso, de integração homogênea e lisa com a natureza.

Como bem coloca Vilém Flusser em “A Fenomenologia do brasileiro”, nossa relação com a natureza é uma de ódio e descrença, que nos coloca fora da (noção de) história e nos insere ainda numa circularidade mítica da violência sem progresso. Daí que relação entre homem (aqui homem mesmo, não humano) e natureza que se apresenta nessa peça é uma que se permite apontar em dois sentidos: o do gozo erótico de uma multidão que delira no funk e no samba mas também a marcha organizada utópica-modernista do “terror e bomba”, que estão mais próximas do que desejamos.