marcela levi
Djuna Kramer
Theaterkrant
Visto em 9 de julho de 2019, De Melkweg
Amsterdam
Julho 2019
UMA NOITADA SUJA ESPECIAL
Como um cruzamento entre um raver e alguém prestes a se transformar em um lobisomem, é assim que o dançarino argentino Ícaro dos Passos Gaya aparece no início do solo de dança Boca de Ferro. Fungando pesadamente, ele dança através dos espectadores, que estão em círculo ao longo das paredes da sala. Com um ar possesso em seus olhos, ele pisoteia o chão fortemente, enquanto seus braços fazem movimentos de batida que sugerem uma festa techno. Ocasionalmente ele esbarra em alguém.
Dos Passos Gaya faz outra volta, e outra, e outra: parece continuar indefinidamente. Enquanto isso, o suor jorra de seu torso nu, misturado com uma tintura roxa que parece vir do nada. Seu olhar nunca está focado em alguém e pode ser melhor descrito como possuído. É impressionante por quanto tempo ele pode se aguentar nessa dança frenética e como ele continua mantendo o mesmo ritmo com as batidas dos seus pés, de modo a que o ritmo possa ser sentido sem música.
Embora seja um espetáculo fascinante (e também um tanto assustador), você se pergunta em algum momento se isso vai continuar pelo resto do show. Mas, então, de repente, uma música alta salta dos alto-falantes, e sobressalta o público. Uma voz masculina escande fragmentos incoerentes de texto em português, que são traduzidos em uma tela de projeção. O que ouvimos é o tecnobrega norte-brasileiro, um gênero que pode ser ouvido em festas de rua na região brasileira do Pará e que as coreógrafas Marcela Levi e Lucía Russo querem homenagear em Boca de Ferro. DJs misturam tudo nessas festas, de Justin Bieber ao agressivo hip hop brasileiro. Ao longo de tudo isso você pode ouvir os ritmos do Caribe que influenciaram fortemente a música tradicional da região. "Boca de Ferro" se refere aos megafones com os quais décadas atrás eram anunciados os bailes que lançaram as bases para o tecnobrega.
Que esta música seja apenas introduzida no meio da performance funciona bem. O espectador já foi levado ao transe pela batida monótona de Dos Passos Gaya e fica então hiper-focado em tudo o que ele faz. Se, de repente, ele cai no chão e fica ofegante por alguns minutos com uma cara de dor, se ele canta textos sobre sexo e violência, se ele fica convulsivamente no chão: você não pode desviar o olhar. Além disso, seu suor e sua saliva literalmente o borrifam, tornando impossível escapar dessa performance.
A princípio parece muito ambicioso - um dançarino que tem que transmitir a atmosfera de uma rave inteira, mas gradualmente a escolha se torna compreensível. Durante festas como esta, você pode sair de si mesmo de tal forma que, na verdade, se torne uma experiência muito individual, mesmo se você estiver no meio de uma multidão. Boca de Ferro mostra como uma pessoa, talvez também graças às drogas necessárias, é levada por uma festa, por trechos esparsos de texto e música que continuam trazendo-a para atmosferas diferentes. Quem exatamente o rodeia, o público neste caso, é irrelevante. Dos Passos Gaya não só oferece uma performance física fenomenal, mas também lhe dá a experiência de uma noitada particularmente suja, sem ter que se mover por um único momento.